domingo, 29 de abril de 2018

A tríade espacial de Brasília, por Soja

Introdução - SciELO Livros

books.scielo.org/id/jbt6b/pdf/catalao-9788579831058-02.pdf
elaborado por Soja (1996; 2000), tendo em vista subsidiar as análi- ses sobre o espaço metropolitano de Brasília. A conceitualização da trialética espacial de Soja, embora efetiva- mente presente apenas a partir do segundo livro de sua trilogia7 de- dicada a analisar a sociedade com uma preocupação eminentemente


(...)

Abordando as relações entre o vivido e o concebido,
Lefebvre mostra-nos que o vivido, âmbito
de imediatidades, não coincide com o concebido.
Entre um e outro opera uma zona de “penumbra”
na qual opera o percebido. O percebido corresponde
a algum nível de entendimento do mundo,
funda atos, relações, conceitos, valores, mensagens,
verdades... O percebido do mundo está,
inexoravelmente, envolto em representações, e
portanto situa-se no movimento dialético, que
nunca cessa, entre o concebido e o vivido.
(Seabra, 1996, p.80)
Este livro tem a finalidade de compreender a configuração do
espaço metropolitano de Brasília, diferenciando-se de outros porque
a análise se faz sob a ótica da vida quotidiana e da produção do
espaço vivido como síntese da relação entre os espaços percebido e
concebido, sumariamente esboçada na citação de Seabra.
A análise sobre a capital federal terá como pano de fundo uma
discussão teórica acerca do espaço geográfico e da relação espaçosociedade
a partir do diálogo com autores como Henri Lefebvre
e Edward Soja, além de outros da Geografia e das demais ciências
preocupadas com a dimensão espacial da sociedade.

16 IGOR CATALÃO
Essa escolha teórica diz respeito ao meu comprometimento com
a teoria espacial a partir da abordagem que toma por conceito a produção
do espaço (Lefebvre, 1976 [1973]; 2000 [1974]).
Pensando o espaço
Ao longo dos anos, muitas têm sido as tentativas de conce
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 17
verdade, sempre foi tratado a partir de perspectivas de análise com
enfoques diferentes, sem preocupação com uma possível unidade,
que podem ser agrupadas em três campos: um físico, relacionado,
sobretudo, à dinâmica e às leis da natureza, do cosmos; um mental,
referente à abstração e ao pensamento lógico formal; e um terceiro,
social, ligado à organização e ao desenvolvimento das relações sociais.
Assim, do ponto de vista de Lefebvre (idem), em termos espaciais,
têm-se: o espaço percebido, aquele da prática espacial; o espaço
concebido, relacionado às representações do espaço; e o espaço vivido,
referente aos espaços de representação. Para o autor, essa tríade
espacial jamais pode ser tomada como um modelo abstrato, distanciado
da concretude da vida, sob pena de perder sua força teórica.
Interconectados que estão os três campos, inter-relacionando-se e
mesmo superpondo-se (Soja, 1993), é fácil a um indivíduo passar,
no quotidiano, de um campo a outro sem percalços, pois, segundo
Dear (1994), cada um desses campos expressa-se, ora mais, ora menos,
consoante o contexto social local. Outrossim, é enfocando esses
três campos espaciais, que estou denominando dimensões do espaço,
que pretendo analisar o processo de metropolização de Brasília.
O esforço de Lefebvre (2000) direciona-se, então, para alcançar
um conhecimento propriamente do espaço, superando as análises
que se focam mais sobre as coisas existentes no espaço ou as que se
restringem apenas ao plano de um discurso espacial.3
 Esse conhecimento
do espaço só pode ser alcançado por meio de uma análise que
considere as três dimensões supracitadas, de forma a reconhecer
que tanto o espaço percebido quanto o concebido e o vivido são,
fundamentalmente, o mesmo espaço tomado em dimensões de aná-
lise distintas. Essas dimensões, no plano do quotidiano, porém, não
se dissociam, mas têm igual importância para a vida em sociedade e
incidem diretamente nela.
 3 “Sem esse conhecimento, somos levados a transferir para o nível do discurso,
da linguagem per se – isto é, o nível do espaço mental – uma larga porção dos
atributos e ‘propriedades’ daquilo que é, na verdade, o espaço social” (Lefebvre,
1991, p.7, tradução nossa, destaque do autor).
18 IGOR CATALÃO
A teoria unitária espacial em Lefebvre (idem) consiste em compreender
que o espaço é, antes de tudo, social. Para a Geografia,
como ciência dedicada à compreensão espacial da sociedade, essa
afirmação implica considerar que as análises devem obrigatoriamente
levar em conta a implicação social que têm quaisquer fenômenos
de ordem espacial, já que o espacial não pode mais ser entendido
como a dimensão do fixo, do inerte, do “associal”, como durante
muito tempo se supôs (Soja, 1980). Essa acepção não implica forçosamente
que as dimensões física e mental sejam desprivilegiadas na
análise espacial, mas assevera que a dimensão social é a que engloba
as demais, na medida em que é nela que a vida social revela-se.
A triplicidade espacial pensada por Lefebvre (2000) tem um
comprometimento fundamental com a dialética, como o demonstra
Seabra (1996) na citação que abre esta introdução. Com a dialética,
o autor supera as análises feitas a partir das relações entre dois termos,
os “binarismos”, o que, para ele, se trata de uma redução “a
uma oposição, a um contraste, a uma contrariedade” que “se define
por um efeito significante: efeito de eco, de repercussão, de espelho”
(Lefebvre, 2000, p.49, tradução nossa).4
 A partir da dialética,
é possível pensar em uma relação não fechada entre duas partes,
pois, ao se inserir um terceiro elemento na relação, outros caminhos
são abertos e outras possibilidades são criadas, porque “há sempre o
Outro” (idem, 1983, p.161); é o recomeço, uma continuação de algo
antes fechado e/ou cíclico. Para Harvey (2004, p.262), é essa dialé-
tica que permite aproximar-se mais direta e abertamente da dinâmica
do espaço-tempo, assim como da representação “[d]os múltiplos
processos materiais em intersecção que nos aprisionam tão firmemente
na tão elaborada teia da vida socioecológica contemporânea”.
Nesse sentido, a dialetização do espaço – entendido, pois, como
uma mediação interativa entre as formas do ambiente construído,
resultante da transformação da natureza, e a vida social que anima
essas formas – é tanto mais necessária, já que, segundo Massey
 4 Un rapport à deux termes se réduit à une opposition, à un contraste, à une contrariété
; il se définie par un effet signifiant : effet d’écho, de repercussion, de miroir.
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 19
(2004), o espaço está em um eterno processo de devir, nunca acabado
e jamais fechado ou cíclico, sendo o domínio que permite a
existência da multiplicidade e a coexistência de trajetórias diversas.
A abertura possibilitada pela triplicidade impede que o espaço seja
visto como um sistema dentro do qual tudo esteja previamente
relacionado com tudo, como uma simultaneidade finalizada, cujas
interconexões estejam desde sempre estabelecidas.
Pensando Brasília
A partir disso e considerando Brasília como objeto de análise,
trato de demonstrar a implicação que têm as dimensões espaciais
na vida que se reproduz espacial e quotidianamente na metrópole,
além de ser este um esforço para uma compreensão unitária do
espaço metropolitano que tem em vista contribuir também para
o desenvolvimento da Geografia enquanto ciência e para as teorizações,
explicações e compreensões a respeito do processo de
metropolização.
As dimensões espaciais serão analisadas a fim de desvendar
suas especificidades e sua influência na reprodução espacial da
vida, tendo em vista que, como coloca Shields (1999), a contribuição
espacial do pensamento de Lefebvre recolocou a Geografia no
debate teórico crítico mediante a espacialização da dialética que,
descoberta na obra do autor, possibilitou a reintegração de vários
movimentos progressistas intra e extrageográficos.
Pensar a metrópole de Brasília a partir da dialética socioespacial
em seu desenvolvimento teórico como dialética de triplicidade
é uma tarefa desafiadora que abre a possibilidade de expandir e
complexificar a imaginação geográfica ao incorporar elementos
que, por vezes, são tratados de maneira desvinculada. Significa,
assim, pensar a metrópole como espaço real e concreto, produto
sócio-histórico e materialidade resultante, por um lado, da prática
espacial da sociedade local e, por outro, do próprio processo da urbanização
brasileira sob o capitalismo. É a cidade entendida como
20 IGOR CATALÃO
mediação entre a ordem próxima e a ordem distante (Lefebvre,
2006), também espaço imaginado e planejado, abstração intelectual
e artística, resultante dos preceitos do Urbanismo e da Arquitetura
Modernista do século XX sob a concepção de Lucio Costa e Oscar
Niemeyer, inspirados nas ideias de Le Corbusier. É também o espaço
dos planejadores tecnocratas, dos cientistas, dos intelectuais e
dos artistas, uma representação da realidade com finalidades incontáveis.
Finalmente, consiste no espaço de reprodução da vida, material
e simbólica, possibilidade de apropriação e, ao mesmo tempo,
espaço de opressão e segregação. É no espaço vivido, quotidianamente
experienciado, que se guardam as representações da vida
e inscrevem-se os trajetos e as trajetórias individuais e coletivas.
Nesse espaço, mesclam-se o real, o concreto e o imaginado, pois é a
dimensão dos momentos únicos em que o espaço é produzido e nos
quais se tornam concretas as abstrações e percebem-se as modificações
resultantes da práxis.
A bibliografia sobre Brasília é bastante extensa, contando com
estudos em diferentes disciplinas científicas e versando sobre temas
diversos. Nesses estudos, Brasília é tratada: em seu aspecto
arquitetônico, como cidade-modelo ou cidade-símbolo do Modernismo;
ou natural, considerando o domínio do cerrado em seu
território e sua grande biodiversidade; são consideradas também
suas funções de sede da administração pública federal e de centro
decisório da gestão territorial em escala nacional (IBGE, 2008). No
que se refere à sua estruturação espacial, também não são poucos os
livros e artigos que se têm feito, desde sua inauguração até os dias
presentes, abarcando de sua concepção e idealização à sua transformação
em metrópole, ao seu espraiamento além de seus limites
político-administrativos, à sua dinâmica territorial e às implicações
sociais e demográficas do crescimento urbano. No que tange ao
quotidiano, existem estudos enfocando realidades locais em relação
aos problemas e desafios enfrentados pela população de diferentes
partes do espaço metropolitano, além das manifestações culturais
e artísticas presentes no fazer social. Assim, não se trata de uma
metrópole carente de estudos, que seja desconhecida no âmbito
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 21
científico, mas de uma realidade complexa bastante estudada em
inúmeros aspectos e com diferentes abordagens.5
A proposta de pensar Brasília a partir da tríade espacial é, antes
de tudo, a preocupação explícita com a dimensão espacial da realidade
social. Trata-se, de um lado, de pensar o espaço metropolitano
como produto social e como representação do vivido, levando-se
em conta o grau de determinação que ele tem sobre as relações sociais.
De outro lado, significa fazer a síntese, no plano da análise,
das dimensões espaciais que muitos já estudaram separadamente
e que, no plano do quotidiano, existem de maneira interdependente.
Utilizando as palavras de Soja, trata-se de fazer a análise em
uma perspectiva que não se destina somente a fazer uma crítica das
análises isoladas que tomam como base as dimensões percebida e
concebida do espaço, “mas também a revigorar suas abordagens
sobre o conhecimento espacial com novas possibilidades até agora
impensadas dentro das disciplinas espaciais tradicionais”. Essa
perspectiva diz respeito também àquilo “que Lefebvre uma vez
chamou a cidade, uma ‘máquina de possibilidades’; [...] a busca
de espaços perdidos, uma relembrança – um repensar – uma redescoberta
de espaços perdidos... ou nunca antes assinalados” (Soja,
1996, p.81, tradução nossa, destaque do autor).6
De fato, não estou propondo uma “nova invenção da roda”, mas
apenas uma maneira de refletir sobre o espaço, simultaneamente
unitário e trialético, a partir de aspectos que considero importantes
para sua compreensão. Em outras palavras, proponho analisar o espaço
metropolitano de Brasília como resultado da prática espacial,
 5 O conjunto de coletâneas organizado por Aldo Paviani, apresentado nas referências
ao final do livro, exemplifica os inúmeros temas abordados referentes
a Brasília em suas várias dimensões.
 6 Such thirding is designed not just to critique Firstspace and Secondspace modes
of thought, but also to reinforce their approaches to spatial knowledge with new
possibilities heretofore unthought of inside the traditional spatial disciplines.
Thirdspace becomes not only the limitless Aleph but also what Lefebvre once
called the city, a “possibilities machine”; or, recasting Proust, a Madeleine for a
recherche des espaces perdus, a remembrance-rethinking-recovery of spaces lost…
or never sighted at all.
22 IGOR CATALÃO
como produto da abstração e concepção de indivíduos e grupos e,
sobretudo, como representação. Essa representação, porém, não
quer dizer um entendimento do espaço como metáfora, como ilusão,
como ausência, mas puramente como o lócus da reprodução
da vida, produto material (Lefebvre, 1973; Soja, 1980) em que se
explicitam as relações e contradições do fazer social, a presença, o
meio pelo qual o ser social se realiza (Lefebvre, 2000).
Não obstante, o esforço em analisar o espaço metropolitano de
Brasília nessa perspectiva enfrenta o desafio de tratar-se de uma
realidade complexa, com muitas nuances, e, dessa forma, certamente
lacunas continuarão abertas devido à persistente necessidade
de termos de escolher aspectos a serem observados. Além disso,
a tarefa de separar, no plano analítico, dimensões que quotidianamente
existem de maneira articulada e imbricada serve apenas
para melhor compreender os processos e estabelecer as correlações
entre as partes estudadas. É fato, porém, que, como se tratam de
dimensões dialeticamente relacionadas, a análise sobre cada uma
delas estará repleta de elementos das demais, sendo puramente uma
separação formal que se fará.
Dito isso, ressalto que uma análise que se propõe a abranger
os aspectos socioespaciais de uma dada realidade não se obriga a
incluir tudo quanto exista e seja passível de ser estudado, pois parto
da ideia de que a dialética socioespacial permite que a totalidade da
relação espaço-sociedade seja abarcada, ainda que inúmeros elementos
não possam ser considerados. Trata-se então, e sempre, de
uma questão de escolha.
Para a análise do espaço metropolitano de Brasília, proponho
uma maneira de ver a metrópole que parte um pouco de uma inversão
da ótica sob a qual estamos habituados a analisar as realidades
metropolitanas. Meu desejo é tentar enxergar a metrópole a partir
do quotidiano, do espaço vivido. Em outras palavras, significa entender
o processo de metropolização não apenas em suas relações
macroestruturais, mas, sobretudo, a partir daqueles que lidam com
os elementos macroestruturais em seu processo de construção da
vida, isto é, os habitantes. O que significa, para os habitantes da
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 23
periferia metropolitana, viver em um espaço marcado por grandes
descontinuidades do tecido urbano? O que traz para a organização
de sua vida a permanência em deslocamentos demorados que os
fazem deparar-se com paisagens intercaladas de ambientes construídos
e não construídos? Ou ainda: como a configuração espacial
de Brasília, marcada pelas descontinuidades do tecido metropolitano
e pelas grandes distâncias decorrentes dessas descontinuidades,
influencia no uso do espaço-tempo quotidiano por parte dos habitantes
de sua periferia goiana e oferece possibilidades e/ou limites à
realização do direito à cidade? São questionamentos como esses que
orientam a discussão contida neste livro.
Para responder a essas questões, proponho uma discussão baseada
no seguinte esquema teórico de análise geográfica da metropolização,
que articula os planos teórico e empírico:
Plano teórico: Espaço (percebido, concebido, vivido)
Plano empírico: Quotidiano
(mobilidade espacial, práticas espaciais)
Descontinuidades territoriais
Dinamização do processo de metropolização
Em primeiro lugar, temos o espaço entendido em sua articulação
dialética entre as dimensões do percebido, do concebido e do
vivido, que incidem uma sobre a outra, determinando-se. Entre as
três dimensões, o vivido é a que resulta como síntese, pois é a pró-
pria representação da vida social que se reproduz quotidianamente
e que surge a partir da articulação entre o concebido e o percebido.
É na dimensão do vivido que enxergamos a ligação entre os planos
teórico e empírico, pois o espaço vivido é a dimensão geográfica do
quotidiano, sendo este, por sua vez, entendido como a dimensão
24 IGOR CATALÃO
temporal da existência. Assim, temos, em segundo lugar e consequentemente,
uma dimensão que revela o ser na metrópole. Colocando
em termos espaciais, temos um processo de metropolização
que é dinamizado pela mobilidade e pelas práticas espaciais que são
marcadas, se não determinadas em algum grau, pelas descontinuidades
do tecido metropolitano.
Uma nota sobre o método
A construção do pensamento que originou este livro vincula-se
a uma perspectiva dialética que vai da conceituação da dialética de
triplicidade espacial de Lefebvre (2000) ao seu desenvolvimento
elaborado por Soja (1996; 2000), tendo em vista subsidiar as análises
sobre o espaço metropolitano de Brasília.
A conceitualização da trialética espacial de Soja, embora efetivamente
presente apenas a partir do segundo livro de sua trilogia7
 dedicada
a analisar a sociedade com uma preocupação eminentemente
espacial, é o resultado de suas considerações esboçadas em Geografias
pós-modernas sobre a dialética socioespacial e sobre a maneira
como se relacionam o espaço, o tempo e o ser enquanto dimensões
da existência humana – o que posteriormente ele conceituaria como
trialética ontológica do ser (idem, 1996).
A teorização de Soja (1993) começa pelo reconhecimento do
peso que teve a influência marxista, sobretudo de origem francesa,
para o desenvolvimento da Geografia como ciência que se dedica
a estudar a espacialidade da vida social. Para ele, a importância do
pensamento marxista consiste na possibilidade de ampliar o debate
acerca da sociedade sob o capitalismo a partir de um materialismo
histórico-geográfico enquanto método de análise. Isso implica, na
visão do autor, que se reformulem radicalmente tanto a teoria social
crítica quanto o marxismo, de forma a transformar também a ma
7 A trilogia de Soja é composta pelos três livros que ele publicou em 1989, 1996
e 2000, respectivamente Postmodern geographies, Thirdspace e Postmetropolis.
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 25
neira como são vistos e conceituados o espaço, o tempo e o ser social
e, por conseguinte, o modo como eles se inter-relacionam. Soja
(idem) atribui essa transformação do pensamento para acomodar o
espaço, o tempo e o ser em sua gama de relações à dialetização teórica
do espaço proposta por Lefebvre (1973). Trata-se, pois, de reconhecer
o espaço no processo dialético de constituição da sociedade e
da história, abandonando o dualismo em função da aceitação de que
“há sempre o Outro”.8
 Para Soja (1996), a frase antirreducionista de
Lefebvre embasa o método que ele apresenta como um thirding-asOthering
crítico, isto é, a análise crítica da dialética pela inserção da
dimensão espacial. Consecutivamente, ele afirma:
E como resultado desse thirding crítico, eu utilizei um outro
termo, “trialética”,9
 para descrever não apenas uma tripla dialética,
mas também um modo de raciocínio dialético que é mais inerentemente
espacial que a dialética convencional temporalmente definida
de Hegel e Marx. (idem, p.10, tradução nossa)10
Com efeito, a dialetização do espaço coloca-o em uma posição
menos subordinada com respeito ao tempo e à sociedade, pois
implica reconhecer que a análise de suas estruturas liga-se diretamente
à análise das estruturas sociais que são historicamente cons
8 Do francês il y a toujours l’Autre (cf. Soja, 1996, p.8 et seq. e 53; Lefebvre,
1983, p.161).
 9 Bem se sabe que a dialética entendida nas formulações tese-antítese-síntese
ou afirmação-negação-negação da negação constitui-se em uma relação entre
três termos em que o último diz respeito ao início de uma nova elaboração, não
se tratando nunca de um binarismo fechado, porque “há sempre o Outro”.
Assim, a tripla dialética de Soja, denominada por ele de trialética, refere-se
apenas à inserção da dimensão espacial na compreensão do processo dialético
do devir social, que é também histórico, e não a um mau entendimento da dialética
como método filosófico, haja vista que “tripla dialética” poderia parecer
uma redundância.
 10 And as for the result of this critical thirding, I have used another term, “trialectics”,
to describe not just a triple dialectic but also a mode of dialectical reasoning
that is more inherently spatial than the conventional temporally-defined dialectics
of Hegel or Marx.
26 IGOR CATALÃO
tituídas. Não obstante, Souza (1988, p.40) esclarece que essa dialé-
tica espaço-sociedade “não existe senão no contexto indivisível da
dialética estabelecida pelos homens ao relacionarem-se entre si e
com as naturezas (primeira e segunda) quando da (re)construção,
interminável, das sociedades concretas”.
No entender de Soja (1993), dessa compreensão deriva uma
transformação completa de como pensar geograficamente o mundo
a partir não da inserção de mais um elemento na análise, mas
da aceitação de que, ao inseri-lo, estamos abrindo outra possibilidade
de ver a história e a sociedade por meio de uma “irrupção
que explicitamente espacializa o raciocínio dialético” (idem, 1996,
p.61). Nessa compreensão reside o gérmen da dialética do espaço
em Soja, e ela diz respeito a um questionamento mais ontológico da
relação espaço-tempo-ser como “nexo construtivo da teoria social”
(idem, 1993, p.148). Em outras palavras, o entendimento do espaço
a partir das três dimensões como ele apresenta-se – percebido, concebido
e vivido – parte, antes de tudo, da compreensão de sua articulação
com o tempo e o ser enquanto dimensões que engendram
a existência humana. Essa articulação decorre da ideia primeira de
que o ser humano é social e produz uma espacialidade concreta em
seu desenvolvimento histórico.
A fonte geradora de uma interpretação materialista da espacialidade
é o reconhecimento de que a espacialidade [...], como a
própria sociedade, existe em formas substanciais [...] e como um
conjunto de relações entre os indivíduos e os grupos, uma “corporificação”
e um meio da própria vida social. (idem, p.147)
Ora, dessa forma, fica claro que a espacialidade, tal como a temporalidade,
é uma dimensão intrínseca ao ser que não é passível de
ser dele dissociada. Essa apreensão ontológica do espaço-tempo-ser,
contudo, não é apenas uma abstração, mas tem uma concretização
plena no plano da práxis que se refere ao espaço enquanto produto
social, ao tempo enquanto construção histórica e às relações sociais
em eterno processo de devir, sendo todos processos concomitantes
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 27
e interdependentes. Dessa relação deriva aquilo que Soja (1980;
1983) denomina materialismo dialético, que é, ao mesmo tempo,
histórico e geográfico, em que a espacialidade é conceitualizada
como forma material das relações sociais de produção.
Em seus trabalhos mais recentes, Soja (1996; 2000) parte de
uma compreensão já madura da interação espaço-sociedade como
um processo dialético, propondo-se a analisar sob quais aspectos
essa interação acontece. O entendimento da dialética espacial
perpassa a construção sócio-histórica do espaço a partir de suas dimensões
percebida, concebida e vivida: respectivamente, “o espaço
percebido da Prática Espacial materializada; o espaço concebido que
ele [Lefebvre] definiu como Representações do Espaço; e os Espaços
de Representação vividos” (idem, 1996, p.10, tradução nossa,
destaques do autor).
Apresentação do livro
A realidade da metrópole de Brasília, que venho apresentar em
uma de suas facetas, é discutida em dois aspectos principais. O
primeiro diz respeito à compreensão do espaço metropolitano como
produto sócio-histórico, resultado da concepção dos elaboradores
do projeto de construção de uma nova capital para o Brasil e da
prática espacial – deles e daqueles que se apropriaram desse espaço,
também atuando em sua produção – que originou aquilo que hoje
conhecemos como Brasília e seu espaço metropolitano.
Ao questionar sobre o processo de produção do espaço metropolitano
e as formas de articulação regional de Brasília, tento demonstrar
que qualquer medida que objetive a resolução de problemas
e a integração de Brasília com o conjunto de cidades que ela
metropoliza deve, obrigatoriamente, considerar a vida quotidiana
da população que habita o espaço e que dele, se já não se apropria,
ao menos tenta ou deseja apropriar-se.
Igualmente, apresento o que pode ser compreendido como
“verdadeiro” espaço metropolitano de Brasília, isto é, aquele que se
28 IGOR CATALÃO
(re)desenha quotidianamente a partir da prática espacial e da apropriação
daqueles que tal espaço representa em suas formas.
O segundo aspecto de discussão da realidade da metrópole brasiliense
constitui-se em uma passagem da análise do plano discursivo
ao plenamente vivido. Ou seja, de demonstrar – por meio de
conceitos, ideias, dados e constatações – de qual espaço metropolitano,
de fato, estou tratando, passo a adentrar esse espaço à
escala do quotidiano para tentar mostrar que espaço vivido é esse:
aquele do qual se apropriam os habitantes de uma periferia distante
e supostamente menos integrada, que são, na verdade, parte constituinte
da metrópole. Trata-se, enfim, de tentar integrar teoricamente
os supostamente não integrados, encontrando no espaço os
traços de representação de suas vidas.
Esses dois aspectos serão analisados em três capítulos. O primeiro
– “Brasília, da concepção ao espaço produzido” – visa a discutir
como Brasília passou de uma concepção de cidade a uma metrópole
real, repleta de aspectos gerais dos processos de urbanização
e metropolização na escala mundial e também de especificidades
decorrentes de sua formação socioespacial.
O segundo capítulo – “Brasília, (re)conhecendo o espaço metropolitano”
– é uma tentativa de análise das maneiras sob as quais
o espaço metropolitano brasiliense é visto tanto pelos cientistas
quanto pelos órgãos oficiais que se ocupam das definições. A partir
dessas maneiras de ver o espaço, apresento o espaço metropolitano
(Mapa 1) como aquele reconhecido na mobilidade quotidiana e nas
práticas espaciais dos habitantes.
O terceiro capítulo – “Brasília, metropolização e espaço vivido” –
busca desvendar a metropolização como processo de constituição
da metrópole que é vivenciado em intensidade pelos habitantes do
espaço metropolitano. Esse capítulo nada mais é que uma tentativa
de adentrar os espaços de representação, vividos quotidianamente,
a fim de encontrar na vida das pessoas os resultados do que foi
apontado nos dois capítulos precedentes. Para tanto, a vida na metrópole
é analisada a partir da articulação entre as dimensões percebida,
concebida e vivida do espaço que resultam nas/das formas do
ambiente construído e nas/das práticas de apropriação.
BRASÍLIA: METROPOLIZAÇÃO E ESPAÇO VIVIDO 29
Mapa 1 – Espaço metropolitano de Brasília. Posição geográfica. 2008.
30 IGOR CATALÃO
Fecho o livro buscando retomar algumas questões levantadas ao
longo dos três capítulos mencionados e procurando elementos para
novas discussões que permitam continuar o debate.
No que concerne aos dados trabalhados, ressalto que, pelo fato
de a análise basear-se em dados do Censo Demográfico 2000 sobre
deslocamentos quotidianos do tipo casa-trabalho/escola, os resultados
são apresentados com uma defasagem significativa, pois estamos
completando dez anos do último recenseamento. Entretanto,
trata-se da fonte mais fidedigna de informações a esse respeito,
que, portanto, não poderia ser substituída por outra. Dados do
Anuário da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)
foram trabalhados em paralelo; contudo, por tratar-se de uma fonte
imprecisa em função do modo como os dados são fornecidos pelas
empresas de transporte concessionárias, mantive o ano 2000 como
marco temporal para a comparação com os dados do Censo.
Os fragmentos das falas de moradores da Cidade Ocidental
apresentados no texto foram extraídos das entrevistas realizadas in
loco em janeiro de 2008.
Para não tornar a leitura cansativa, os detalhes sobre o tratamento
dos dados e sobre a elaboração das entrevistas e dos mapas não
foram incluídos neste livro, o que não causa, a meu ver, prejuízo
algum à compreensão das ideias que apresento, ideias estas que,
aliás, são de minha inteira responsabilidade, ainda que as pesquisas
que as originaram tenham contado com a participação de inúmeros
interlocutores.

http://books.scielo.org/id/jbt6b/pdf/catalao-9788579831058-02.pdf